segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

«Snifar cinzas» - opinião na VISÃO


«Dir-me-ão que ensandeci. Que um dos melhores guitarristas de todos os tempos, o bluesman branco mais genial de Dartford, uma linha de coca, as nuvens que ensombram Portugal e a Europa e as limitações intrínsecas da democracia são assuntos que só podem encontrar relação numa cabeça destrambelhada. Pois enganam-se.
Mas comecemos, por onde estas coisas devem começar, que é pelo princípio. Keith Richards nasceu a 18 de dezembro de 1943. Abreviando as coisas, bebeu inspiração em Chuck Berry, Jimmy Reed e Muddy Waters, encharcou-se em drogas e Jack Daniels, e fez-se a alma musical da maior banda de todos os tempos. Pelo meio, compôs, tecnicamente a dormir, a lendária Satisfaction. No dia seguinte, a memória tinha sido posta a zero e foi por acaso que o velho gravador Phillips lhe devolveu a canção que tornou os Stones famosos no mundo inteiro. Já mais recentemente, numa histórica entrevista, em 2007, e, poucos anos depois, em Life, a extraordinária autobiografia que, já o adivinharam, está na minha mesa de cabeceira, Richards faz uma revelação que haveria de chocar meio mundo: snifou as cinzas do pai. Leu bem.
E assim chegamos, por mais estranho que possa parecer à primeira vista, às crises lusa e europeia. Mas não julguem que estou a sugerir que a dupla Merkozy anda a fazer coisas esquisitas com os restos mortais do Presidente Mitterrand, nas mesas do Eliseu. A explicação é, lamento, menos sensacionalista. O inferno somos nós que andamos, há anos, a snifar as cinzas dos nossos filhos. Pedindo-lhes que assegurem, no futuro, o sustento de um número progressivamente crescente de pensionistas, vivendo durante vinte anos numa ilusão do crédito fácil que lhes deixará em herança uma dívida insustentável e, supremo masoquismo, institucionalizando o roubo intergeracional a que demos o nome de PPP. Deixem que os economistas lhe chamem o que quiserem: despesa, défice, dívida pública. Trocando as coisas por miúdos, vão acabar por dar razão a Keith Richards. Lixámos os putos e aspirámos-lhes as cinzas.
Resta pois perceber porque é que um povo de brandos costumes se entrega, de alma e coração, a esta moderna forma de genocídio financeiro. Está chegada a altura de vos aconselhar o livrinho que vem competindo com o alucinogénico Life pelo controlo das minhas noites de insónia: Portugal: Divida Pública e Défice Democrático, de Paulo Trigo Pereira. Sendo verdade que o problema das cinzas dos nossos filhos ali é tratado com uma elegância muito diferente daquela com estou a traduzi-la ("as democracias também não estão muito aptas a lidar com questões intergeracionais (...) porque as gerações futuras, embora venham a ser afetadas pelas atuais decisões democráticas, nelas não participam através do voto"), o ensaio não deixa de ser um contributo extraordinário para entender, não apenas a atual crise portuguesa, mas, sobretudo, as debilidades intrínsecas da democracia que lhe estão na origem. E sem uma compreensão daquelas, sem uma correção daquelas, dificilmente faremos a cura de desintoxicação que os nossos filhos reclamam.»

Pedro Norton, revista VISÃO, 23 de Fevereiro de 2012

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